Proto-blogue da colectânea “Crónica Sobre Tansos!”

Eu deitei fogo aos armazens do Chiado, confesso. Naturalmente, assino sob pseudónimo, por isso, não se apoquentem…
Por que aqui trago esta? Porque ninguém acreditará que é verdadeira e porque sou um criminoso sentimentalista! Para os mais distraidos, lembro que no dia 25 de Agosto passou outro aniversário sobre o dia da Obra.
Revelo-vos a causa sobre a forma de uma pequena história. Desde já sublinho que não procuro absolvição pública, no máximo, justifico-me com os meus motivos.

Não se enganem pela minha morada! Lá em baixo, no fim do texto, escreve-se que sou de Mem Martins, suburbano, concluirão os mais avisados, fa-lo-ão erradamente, excelências!

O que eu sou é Saloio, duplamente! Sou Saloio dos arrabaldes de Sintra, terra de antigas tradições e gente pitoresca que ainda se mostra por ai fora (basta frequentar as feiras e mercados que vão autorizando nesta normalizada União Europeia), mas sou também saloio de tipo corrente, daqueles que se topam à distância na grande cidade. Bem,… talvez já não tanto como naquela altura.

Vivo numa casinha térrea, modesta e singela, deixada na família por meus bisavós, antigos caseiros da Quinta de Fanares de Baixo. Hoje, está entala entre dois caixotes de oito andares, na companhia das portas zincadas das respectivas garagens privativas; é a última sobrevivente de toda a rua. No outro dia, um rapazinho que por cá passava, perguntou ao seu pai porque se chamava esta rua de Rua das Hortas de Fanares e eu, que estava amanhando o torrãozito que ainda sobrou em frente à nossa casa, após o alargamento da via, não resisti, arranquei logo ali uma alface bem viçosa (de entre a mão cheia delas que lá vou plantando) e mostrei-a ao miúdo. É triste saber que daqui a uns anos, ou meses, talvez mesmo antes de morrerem as últimas alface cá na rua, o nome de um qualquer finório, conhecido por alguns gatos pingados da Junta, aqui veja cumprido um pretenso sonho de toda uma vida ao se acrescentar à toponímia nacional!

Onde isto já vai! Desculpem a divagação, mas têm de me conhecer minimamente para que façam proveito das minhas palavras.
Possuo alguns estudos, acabei o secundário em tempo razoável, conheço dos livros, da televisão e das comédias da vida que vão acontecendo a todos. Contudo, de horizontes viajados, tenho ainda poucos a contar e menos ainda tinha em Agosto de 88.

*

Para mim ir a Lisboa era um acontecimento, a começar pelo comboio. O mágico fascínio dos comboios foi revivido por mim tão fielmente como por aquele menino que ainda ontem vi com sua mãe, a caminho de Lisboa. Na grande cidade, os primeiros momentos eram extasiantes; outro mundo, bem vêem. Mas – cá está ele, o pequeno grande senão por que vos faço esperar – o que geralmente me levava a Lisboa era a mais chata, secante, sofrível e ingrata das tarefas que se podem exigir de uma criança, principalmente, aos rapazes mais simples e tapadinhos como eu: ir comprar roupa.

Com a cidade sedutora a envolver-me os sentidos de forma extenuante, lá tinha eu de andar atrás dos meus pais a galgar as ruas em passo de caracol. Mirar a montra de forma incrivelmente lenta, decidir se vale a pena entrar, entrar por fim, escolher, palpar, provar, escolher, palpar, vistoriar, provar, escolher, vezes sem conta, para se sair da loja de mãos vazias e repetir o rito na montra seguinte e, por vezes, recuar à montra anterior para reapreciar e comparar!… Um martírio.

Depressa a excitação dos primeiros momentos transformava-se em ansiedade, um mau estar desgraçado a crescer a cada passo. O encanto dos pombos era substituído pela barulheira e odor insuportável dos motores na Rua do Augusta – parabéns a quem de lá expulsou os carrinhos! A beleza da calçada desenhada não resistia às horas sucessivas que levava a pular de floreado em floreado numa desesperante tentativa criativa de matar o tédio. É, eu morria sempre que tinha de ir nesta procissão. Faltava-me o ar, faltava-me a água, embrulhava-se-me o estômago e, invariavelmente, tinha de irritar toda a comitiva pedinchando a satisfação de alguma destas necessidades vitais, ou então, reclamando igual lentidão em lojas de jogos electrónicos, em bancas com livros de banda desenhada – pequena vingançazinha pouco reconfortante, diga-se de passagem. Uma tarde inteira nisto. Com sorte, lá reanimava os sentidos quando convencia a comitiva a ir espreitar o rio mais de perto, mas era coisa rara “por causa do tempo que se gastavaâ€?, diziam.

Rua dos Fanqueiros, Rua da Prata, Rua Augusta, Rua do Ouro e respectivas transversais, Praça da Figueira e outras envolventes, era este o calvário, sempre em busca de um par de calças, de sapatos, de sapatos de ténis – até isto eu detestava comprar, contrariando a maioria dos meus pares de geração -, de camisas, ou até mesmo – supremo dos martírios- de pijamas, chinelos, cuecas, peúgas, roupões, lenços e outros trocados.

Há um cantinho da cidade de que ainda não falei: o Chiado e, principalmente, a dissimulada Rua do Carmo. Linda rua aquela, de aparência agradável, subida (ou descida) ligeira, menos transitada por veículos… Escondia o meu maior inferno. Entrando nos Armazéns, estavam garantidas horas de tédio e sufoco repartidos pelos variados pisos da torre. Só tinha um aspecto a favor: como é que entravamos por uma porta, fartava-mo-nos de descer degraus e depois saia-mos por outra, directamente para a rua sem subir um palmo? Mistério insignificante perante o sacrifício que exigiam!

Passado um dia de cão – como eu invejava os pombos! – ainda tinha de ser submetido àquela última provação?! Depois das promessas que sempre se adivinham numa novidade (bem embrulhadinha na deliciosa viagem de comboio) faziam-me uma traição daquelas!

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Os anos passaram sem alterações de monta no ritual, agravado apenas pela acrescida dificuldade em caber nas roupas, provocada por esta rasquíssima característica nossa de termos em média mais um palmo do que a média da população. Finalmente, um dia, na volta de uma noitada no BA – não foi propriamente uma noitada, foi a primeira e única, até à data – acossado pela lembrança da ameaça da minha namorada de então – uma lisboeta chatérrima (conhecimento das praias de Sintra) que vim a descartar em três tempos -, cometi o crime. A rapariga vivia de gelados e de maratonas à caça de roupas, exigia que gastássemos o Sábado que se seguia numa dessas provas, em tudo semelhante às minhas anteriores provações. Não resisti à louca desinibição nocturna e deitei fogo aos armazéns com o auxílio de uma meia garrafa de vodka, uma mecha acesa e um lançamento perfeito. Liberdade!

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Cá em casa, sou conhecido como o T.G.V., por duas razões: uma é a de que ninguém se consegue vestir e despir mais depressa do que eu – há sempre coisas mais interessantes a fazer antes e depois desses breves instantes- e a outra é a de que, agora, ninguém é capaz de comprar roupa adequada mais depressa do que eu! Em abono da verdade, também não tenho muita escolha, pois com os meus dois metros – há cá muitos assim em Mem Martins, por isso, não pensem que me apanham com esta “desatençãoâ€?- não há assim muitas lojas e marcas por onde escolher.

Quando penso que o que fiz foi um crime, regozijo-me de ver o fervilhar de tanta gente na realização de recriar o antigo coração da cidade; vejam o Siza Vieira que ganhou assim tão rara oportunidade de mostrar talento aos seus ignorantes compatriotas lisboetas! Só me custa é ver aquela gente que ficou sem emprego e todo o imbróglio que inventaram antes que reconstruíssem a zona. Mas o principal está feito, por portas e travessas garanti que os armazéns passassem à história. Agora, é só dar um pulinho às Amoreiras ou ao Cascais Shopping para comprar Benneton, Façonable, Maximo Dutti, -já foram ver os saldos à Zara?- e que tais, ou então, é ir ali à praça.

*

Digamos que fui um curto circuito saloio em 25 de Agosto de 1988 rodeado de muita carga térmica inflamável. Já lá vão oito anos de carga térmica a consumir-se. Haja pachorra! Mas nem assim me arrependo! Deitava o fogo outra vez. Palavra!

Assinado: T.G.V.
27 anos, Trolha, Mem Martins
(1996)

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