Porque me lembrei de Fernando Alves, António Jorge Branco, José Feliciano e de uma história que ouvi contar pela primeira vez há mais de 10 anos assomado a um postigo na rádio .

A parede que fala e tira o sono

Lenura, Beira Baixa, 1957

Na praça do Cruzeiro apenas um galo madrugador quebrava a imobilidade e o silêncio. Nas restantes ruas não havia quem notasse a falta do som das carroças e ninguém ficara apeado quando a carreira das seis não veio. O dia nascia calmo e propício à indolência como convinha aos finais do mês de Agosto.
Perto da novíssima torre do posto de alta tensão, bem no centro da aldeia, o canto do galo e o toque do sino às meias horas rivalizavam com o chilrear crescente das andorinhas que se empoleiravam às centenas nos cabos eléctricos que dali partiam.

Em toda a aldeia, apenas a Ti Chitas vira nascer a estrela da manhã e apenas ela tinha o burro alimentado e o terço rezado quando o Toninho “Baratasâ€? apareceu de mãozitas nos bolsos das calças, pé descalço, cabelo em desalinho e ainda bastante estremunhado na praça do Cruzeiro.
Quem visse o petiz àquelas horas da manhã de domingo, especado a olhar seriamente para a parede lisa e bem caiada da Casa do Povo, ora de frente, ora de meio fio, de perto, depois de mais longe e chegando até a encostar-se a ela e a raspar pedacitos de caliça branca que mereciam exame atento e demorado com todos os sentidos – e que amargo era o petisco! – quem o visse naqueles preparos, dizia, tomá-lo-ia por doido ou por possuído pelos maus espíritos que põem as pessoas a fazer coisas levadas do diabo em pleno santo sono. O que é certo é que não havia quem ali estivesse para apreciar a peça e muito menos havia espíritos malignos que o atentassem.

Achando um mocho encostado ao chafariz do Cruzeiro, o Toninho “Baratasâ€? – alcunha que ganhara nesse mesmo ano por se demorar sempre no recreio a amestrar baratas, bichos-clérigos e demais insectos rastejantes que apanhasse à mão – agarrou-o, pô-lo ao centro da praça e de frente para a parede da Casa do Povo sentou-se, continuando a mirar a parede. Não satisfeito com a posição, levantou-se e tendo chegado junto à parede virou-lhe as costas e contou um número determinado de passos, marcando o local com os olhos e colocando sobre ele o mocho de verga e pau. Sentou-se a si no assento e à sua cabeça de oito anos nas palmas das mãos que acabavam nos cotovelos fincando os joelhos. Assim esteve largos minutos de olhos já bem vivos e cheios de sonhos, a olhar a parede.

O galo que passeava ali perto, voltou a cantar a alvorada sem resultado aparente e topando com o “Baratasâ€? interessou-se e aproximou-se sempre desconfiado. Cantou de novo. Aproximou-se um pouco mais , emproou-se um pouco melhor arrebitando a crista e passeou-se bem na frente do “Baratasâ€? maneando a cabeça discretamente, o suficiente para se assegurar de que não seria surpreendido por alguma reacção; como esta não veio, o bicho enfadou-se e regressou à capoeira mantendo a pose.

Ao bater meia hora, uma brisa mais forte carregou até ao pé descalço da criança um dos folhetos escritos em letras grandes e liláses que encheram as ruas da terra na sexta-feira e no sábado. Sem lhe pegar leu-o devagar, letra a letra, sílaba a sílaba, apesar de já o saber de cor. Depois, sorriu, pôs as mãos atrás da cabeça, olhou as últimas estrelas e soube que elas eram como a máquina de luz que estivera ali ontem onde ele estava agora. Soube então que era mesmo dela que vinham as imagens e os sons que encheram a parede e a praça. O filme que vinha das estrelas era o sol que nascia e o cantar dos pássaros e ele e todas as coisas que há no mundo.

O galo tornou a cantar e o “Baratasâ€? pulou do assento, correu para a parede, parou bem perto, virou-se para a praça e começou uma série de gestos e acrobacias salpicadas por palavras soltas, berros, urros e demais efeitos sonoros que tão depressa pareciam imitar um cavalo a relinchar como um comboio a vapor. Pulou e espalhou cabriolas por toda a praça, fez do mocho o centro da sua coreografia: disparou sobre ele as suas pistolas fumarentas; lançou-lhe um laço levantando muito pó; fugiu dele abrigando-se junto à parede e abraçou-o como se na despedida antes da grande aventura.

A chinfrineira cinéfila acordou o Zé “Taberneiroâ€? que tinha o boteco ali na praça. Chegando-se à porta, despejou a má disposição da ressaca que trazia da noite anterior num imediatamente contido berro de «Caluda!». Com a cabeça a latejar e ainda meio zonzo foi à praça agarrar no mocho que de seguida desfez atirando contra a parede da Casa do Povo e errando largamente o alvo palrador que não desarmou. O Toninho “Baratasâ€? – «Alma do diabo!» – correu a cavalgar acenando um dos folhetos com letras liláses pela Rua Direita a baixo, imensamente feliz, e a gritar espantando gentes e andorinhas: «Não percam o cinema itenerante de José Feliciano em Lenura sábado e domingo! No sábado as aventuras do oeste americano entre cowboys e índios no mais empolgante filme do ano com John Waine: Rio Vermelho! No domingo, o melhor filme de desenhos animados alguma vez produzido: Fantasia de Walt Disney, deixem-se maravilhar com a cor e o som do espectáculo do cinema! Sábado e domingo em Lenura na Praça do Cruzeiro às nove horas da noite! Tragam assentos!».

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