O sargento Federico Gracias era o comandante do pelotão. Trinta e muitos anos, um metro e setenta, vozeirão à sargento. “Sou a voz da morte”, dizia, em tom excepcionalmente cavernoso, ao ouvido da beldade de serviço numa qualquer taberna. Olhava-a então bem fundo, enigmático, primeiro, e completamente ameaçador, por fim. Fazia isto, sempre que estava bêbado de mais para querer folia. Depois, ria-se que nem um tolo até perder os sentidos. “A voz da morteâ€?, balbuciava no dia seguinte, quando acordava na sua tenda.

Em regra, o comandante do pelotão oferecia ironia e humor negro, mantinha a moral irrealmente elevada. Mas, às vezes, afogava-se em álcool ou em lágrimas, consoante primeiro lhe chegasse um copo ou uma companhia paciente. Achava-se melhor quando estava com alguém, quase sempre em silêncio, sentado à mesa de uma tasca diferente da do dia anterior.

Nas noites em que conseguia adormecer, o último pensamento ia-lhe frequentemente para a deliciosa maçã que comera, há mais de trinta anos, encostado à vedação da casa dos seus avós maternos, na aldeia da Faia Grande, do outro lado da actual fronteira. Lembrava-se do estalar da maçã rija entre os dentes e do cheiro a feno vindo do palheiro monumental. O calor subtropical em que entrava ao mergulhar nos cobertores, lembrava-lhe a brisa morna que anunciou o fim daquela tarde de verão; era então que adormecia.

*

À saida do rancho:
– Sargento Gracias! Reuna já os seus homens. Hoje ainda têm serviço. Há muito desertor cá em Vila Rodrigo! O nosso general quer o serviço feito antes do arrear da bandeira. E isso limpinho, nada de dramas! Amanhã, antes do alvor, já devem ir a caminho de Gata. Entendido?
– Sim, meu major!

Ninguém quer o pelotão de fuzilamento mais famoso da península no seu quartel. Sempre em bolandas como um circo itenerante, sempre as mesmas caras trombudas pela frente. Asco, eram disso, as caras.
Na tenda do sargento:
– Meu sargento!
РO que ̩ que queres?
– Que o meu sargento me dê um tiro nos cornos! Pois já era tempo de saber!
– Hoje não estou com paciência para brincadeiras, Lombriga…
Lombriga correspondia, na medida do quase impossível, à sua alcunha. Era magríssimo, alto, muito branco e tinha uma enorme boca oval cheia de dentes retorcidos, desproporcionados para o crânio tão reduzido. A sua frase de marca era responder que: “As lombrigas têm duas bossas e eu, como não tenho nenhuma, só posso ser uma ténia, camelo!â€?. O Lombriga tentava também (e de forma muito dedicada) cumprir o papel de aguarrás, atazanando tudo e todos, mas, geralmente, só agravava o mal estar eternamente latente entre os colegas. Era muito óbvio na sua tentativa de proporcionar uma realidade alternativa. Sempre que o caldo ameaçava entornar-se para o seu lado, tinha de se refugiar na exploração da figura anormal. Mas não se ficava por aqui o espírito missionário do Lombriga. Secretamente, tentava evitar que os colegas tivessem motivos para lhe chamarem parasita; razões além das evidentes. No fundo, ansiava sentir-se útil e querido pelos colegas.
– Sabia que hoje vamos consumar um poeta, meu sargento?
– Irra!
– Pronto, desculpe. Sabia que hoje vamos fuzilar um poeta? Não me diga que não leu a lista do…
– Toda a gente sabe que não gosto de poesia…
РAh! Enṭo, finalmente, vamos fazer alguma coisa do agrado do meu sargento!
– …mas sempre gostei de poetas.
– Ó diabo!
РQuem chamou? (berra algu̩m do lado de fora da tenda)
– Não é contigo, Diabrete de Alcântara! E se a gente puser o indivíduo a declamar na hora da ordem? Sempre se torna mais fácil, meu sargento!
– Lombriga, és um anjo! Depois do que se passou ontem em Rigremoz eu pensava que não só seria incapaz de ordenar fogo, como eu próprio nunca mais seria capaz de disparar um tiro… Mas… Hoje, vou fazer a vontade a alguém e não vai ser só ao general. Lombriga?
– Meu sargento?
Pum!
– Que foi isso, meu sargento? (pergunta um soldado que se assoma à entrada da tenda)
– O Lombriga levou com um tiro meu nos cornos.
– Pois já não era sem tempo, meu sargento!
– Reune os homens Diabrete. Está quase na hora.
– Está tudo pronto, meu sargento!
– Então o que é que tu estás aqui a fazer? Mexe-te!
Os homens, que andavam já algo preocupados com o semblante teimosamente sorumbático do sargento, respiraram de alívio assim que lhe viram o sorriso sardónico (com que se havia despedido do defunto Lombriga), acompanhá-lo quando saiu da tenda. O velho sargento, comandante do pelotão, estava de volta!
Ajeitou o bivaque, acomodou o bigode (como se o tivesse) agarrou o cinto com as duas mãos, puxou as calças para cima, pôs as mãos atrás das costas, cuspiu, deu dois passos em frente e berrou:
– Poontar- ahr! …Fogo!
Pum!

(Proto – Blogue de 1996)

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