O Público de hoje publica uma carta aberta ao ministro Paulo Portas escrita por um leitor identificado que se apresenta como um oficial superior do Exército no activo.

Parece-me um contributo equilibrado e sério para melhor percebermos o estado de alma que vai na tropa. Acho o texto particularmente interessante por sublinhar o que é que é relevante para um militar relativamente a tudo o que se tem passado nos últimos anos. Muitas vezes o que é relevante e o que se passa “lá dentroâ€?, não é propriamente o que surge com grande destaque nos jornais. É também um exemplo raro e sintomático vindo de um oficial no activo, a quem, relembro, este tipo de opinião poderá acarretar sanções disciplinares graves caso venha a ser identificado. Pelos motivo já enunciados e para auxiliar no debate em que o Adufe tem participado transcrevo na integra a epístola.

Carta Aberta ao Ministro Paulo Portas
Segunda-feira, 11 de Agosto de 2003
Sou oficial superior (major) do Exército Português, no activo.
Os militares conhecem as ideias estereotipadas e pouco abonatórias sobre o nível de inteligência e o perfil psicológico que a maioria dos cidadãos dedica a quem escolheu esta forma de vida.
Resignados, aguardamos pacientemente que estes preconceitos imerecidos caiam em desuso, como muitos outros que foram sendo destruídos pela força do tempo e do exemplo. Basta-nos saber que não reflectem a realidade e que os exemplares a quem se possam aplicar com propriedade, que os há, reflectem a qualidade do povo a que pertencemos e podem ser encontrados com a mesma facilidade em qualquer outro grupo profissional, incluindo governantes.
Também é verdade que a instituição militar está esclerosada mas não mais que as restantes instituições públicas ou outras instituições centenárias.
Por estas e por outras, muitos cidadãos, incluindo alguns com responsabilidades governativas, abusando do dever de obediência e de silêncio a que os militares se obrigam e sabendo que estes nunca se insurgirão, rebaixam-nos, pensando que os submetem.
Os militares aceitam e cumprem voluntariamente as regras do jogo e as imposições disciplinares a que estão sujeitos por entenderem que estas são essenciais ao funcionamento do tipo especial de organização a que pertencem. Por isso, perante a hierarquia, salvo situações excepcionais, calam sem esforço o que sentem e pensam, levando terceiros a interpretar a submissão a estes valores como aceitação acrítica, genética e patética, do princípio da autoridade.
Não é assim. Os militares pensam e, quando se torna necessário, agem. O exemplo do último Chefe do Estado Maior do Exército prova-o. Mas ele não está só e a sua atitude não pode ficar isolada. O espírito do seu gesto terá de multiplicar-se se os militares quiserem manter o respeito por si próprios e ganhar o dos outros.
É já público que foram ultrapassados os limiares razoáveis do comportamento que se pode tolerar a um Ministro da Defesa. Perante a situação extraordinária em que nos encontramos, na ausência de sensatez dos responsáveis, impõem-se medidas extraordinárias como a desobediência à lei do silêncio e o delito de oposição.
Tem sido dito por jornalistas e analistas que os militares sentem um desprezo visceral pelo ministro da tutela, que não lhe reconhecem carácter ou qualidades para os liderar e que vêem com preocupação o instável rumo da sua governação. Na qualidade de militar no activo venho confirmar o que tem sido calado: é mesmo verdade.
E, a propósito, desmontar as manobras de diversão e de desinformação que pretendem escamotear o real motivo do nosso descontentamento:
1. Não é verdade que nos movam razões de ordem material. Sentimos diariamente a asfixia financeira das Forças Armadas mas percebemos a nossa realidade e já estamos habituados a sobreviver numa instituição tão descapitalizada como tantas outras. De facto, o que nos move são motivos de ordem ética e que se prendem essencialmente com a forma como temos vindo a ser liderados pelo poder político. A maior parte de nós tem uma cultura democrática sólida e aceita sem hesitações a subordinação ao poder político mas não pode ver com bons olhos que esta se vá transformando em humilhação pelo poder político.
2. Também não é verdade que a contestação actual resulte do facto de o ministro pretender diminuir o número de generais. Infelizmente, o descontentamento é mais generalizado, não se restringe aos generais nem a essa questão verdadeiramente irrelevante quando comparada com as causas do nosso desconforto.
3. Também não é honesto desculpabilizar o Ministro da Defesa dizendo que o Chefe de Estado Maior do Exército foi vítima de si próprio ao ter aceite o lugar nas condições em que o aceitou. A ter feito mal, o erro foi cometido pelo militar que desempenhava o cargo mas foi corrigido ao ter deixado de pactuar com situações menos dignas. Acontece que as desconsiderações do senhor ministro foram feitas ao Chefe de Estado Maior do Exército, independentemente de se chamar A ou B e, desse modo, a todo o Exército.
4. Não é senão meia verdade e demagógico o argumento do sentido unidireccional de um sentimento que tem dois sentidos, como o da confiança. Tal como o entende o comum dos mortais e os militares por força da sua missão é tão importante ter confiança nos subordinados como a confiança destes nos seus superiores. Não ter confiança no actual Ministro da Defesa não nos desmoraliza porque um dia deixará de o ser mas deixa-nos apreensivos enquanto lá permanecer. Porque já perdemos quase tudo o que poderia compensar essa ausência de confiança, porque a nossa auto-estima já não é grande e porque receamos os estragos que possa vir a causar pela amostra dos que já causou.
Em resumo, o senhor ministro, apesar do seu apregoado patriotismo, não reúne as condições mínimas necessárias para liderar uma instituição que se obriga a respeitar princípios que o próprio desrespeita. Actualmente, a autoridade de que goza é simplesmente de natureza formal, a que corresponde um respeito de etiqueta, também meramente formal, dirigido à figura do Ministro da Defesa mas não de quem desempenha o cargo. O que não é de menor importância.
Desdramatizando, sabe-se que ele, o país, a instituição e nós sobreviveremos ao ministro. Mas a culpa não deve morrer solteira nas mãos do actual ministro. A outra e não menos importante questão que se coloca é que regime é este que permite que um homem transforme um ministério na sua coutada pessoal e que não preste contas públicas de erros grosseiros que foram tornados públicos. O actual Ministro da Defesa não é o poder político. É apenas uma extensão dele. Algo está mal quando o poder político permite que continue a agir ao sabor do seu estilo muito pessoal sem qualquer tipo de consequências. Mesmo em política, mesmo no sentido estrito do termo, nem todos os fins justificam todos os meios.
Impõe-se que se diga que esta atitude não traduz nenhum posicionamento de natureza político-partidária. De facto, veríamos com bons olhos a deslocação do actual Ministro da Defesa para outro ministério e/ou a sua substituição por alguém do seu próprio partido. Sabemos de antemão que, tão cedo, qualquer outro pouco mais poderá fazer por nós, para além de nos respeitar com a dignidade que qualquer grupo profissional merece. Para esse efeito, qualquer delegado partidário bem intencionado poderá ocupar o lugar. Somos homens e mulheres vulgares que padecem das fraquezas da natureza humana como quaisquer outros. O Ministro não tem de ser perfeito. Nos tempos que correm já nem precisa de ser um homem sério a tempo inteiro. Basta-nos que o seja no exercício das suas funções e que nos considere. Para continuar a dispor da nossa interminável paciência e “incondicional” subordinação.
Leitor Identificado

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